Principal avaliação crítica
3,0 de 5 estrelasUma história retomando antigas concepções sobre a lenda do vampiro
Avaliado no Brasil em 28 de janeiro de 2016
A lenda do vampiro já foi interpretada diversas vezes no cinema, nos livros e até nos quadrinhos. Desde um lorde assustador passando por uma criatura das trevas e chegando a um adolescente com problemas de identidade. Em Andarilho das Sombras, Eduardo Kasse volta às origens da lenda buscando sua inspiração claramente em Bram Stoker. Vocês vão me questionar: mas, espera aí, o vampiro do livro não é aquele lorde das trevas de Drácula. Não, não é, mas a linguagem empregada pelo autor e o próprio cenário apresentado me recordaram muito a Inglaterra de Bram Stoker. Kasse usa uma linguagem mais formal e erudita para compor as falas do personagem. Em alguns momento, o personagem solta um palavrão, mas no geral, ele é um estoico.
Outro elemento que lembra Bram Stoker é que, para o autor clássico, o vampiro é uma não-pessoa. Ao se libertar de todas as amarras sociais como a hesitação em matar e a manutenção de uma postura pudica na maior parte do tempo, o vampiro não é mais capaz de viver em sociedade. Para a criatura vampiro, os humanos são como gado necessário para a alimentação. O protagonista do livro entende os humanos dessa maneira. Além disso, o assassinato acaba se tornando algo tolo e banal, às vezes necessário para ocultar a sua presença.
Andarilho das Sombras fala sobre a história de Harold Stonecross, um vampiro oriundo das ilhas britânicas que tenta a todo custo encontrar o seu lugar no mundo. O enredo se passa em dois cortes temporais: um no presente em que Harold sai da Inglaterra e busca explorar agora o continente habitando Rouen na França e o momento passado buscando construir a infância, a adolescência e parte da vida adulta de Harold até sua transformação. O que eu percebi na história é que por diversas vezes, Harold buscou construir uma vida normal na medida do possível. Primeiro com Liádan, depois com Stella e por fim com Murron. No primeiro caso, ele tenta uma vida ao lado de uma companheira vampira e cede a todos os seus instintos sexuais com ela, mas permanecendo imortais; com Stella, ele buscou uma vida normal, se casando com ela e tendo uma espécie de vida conjugal; já com Murron ele buscou ter uma vida pudica, sem ter qualquer tipo de relação sexual com a mesma. Os dois primeiros casos levaram a situações trágicas e o terceiro levou à morte de sua protegida. O final do personagem é uma conjunção de suas duas primeiras tentativas. Se isso dará uma vida normal, talvez seja abordado em outros volumes da série.
Achei legal o twist que Kasse fez na lenda do vampiro. Não quero comentar em detalhes porque acho isso um dos pontos positivos no livro. No fundo o autor fez uma análise de um confronto entre as religiões tradicionais e a religião cristã. Vemos como Harold acha a nova religião uma completa tolice. Como o ponto de vista do livro parte de um narrador não-confiável, o cristianismo é massacrado como religião. Semelhante caso acontece nas Crônicas do Rei Arthur de Bernard Cornwell onde o protagonista Derfel Cadarn, mesmo pertencendo à Igreja, desconsidera a religião. Vemos também como os cristãos perseguiam os pagãos, submetendo-os a todo o tipo de humilhações. Até mesmo a postura ética de padres e bispos é criticada. Nada como um pouco de humildade e um pouco de moedas de ouro para animar um clérigo da Igreja.
Infelizmente eu não entrei na história. Por ser uma história mais intimista, ela depende do fato de o protagonista ser empático com o leitor. Ou seja, a gente precisa sentir algo pelo personagem: alegria, tristeza, raiva, felicidade. E, para mim, o protagonista é indiferente. A história me pareceu muito parada. Entendi o que o autor quis fazer: se trata de uma história em que um não-indivíduo tenta se encaixar entre indivíduos. Mas, a todo o momento sua maldição como não-indivíduo cria uma situação que faz com que o personagem se afaste da sociedade. Foi assim com a partida de Liádan, a doença de Stella e a perseguição da Igreja. A história não foi capaz de me cativar o suficiente. Senti as páginas passando de forma arrastada. Entretanto, não posso dizer que o livro é ruim. É muito bem escrito e o autor mantém o seu objetivo com a história do início até o final. O livro não funcionou PARA MIM. Talvez com outros leitores ele tenha um resultado diferente. Ironicamente, eu fiquei curioso com o que Kasse deseja fazer com o personagem.
Andarilho das Sombras é uma tomada diferente, porém clássica de uma velha lenda. O vampiro é visto a partir de uma nova perspectiva dando dinamismo à história. A maneira com o autor conduz o personagem até o momento de sua transformação é muito interessante. Esqueçam aquelas ordens secretas de vampiros, tribos no meio da floresta ou conspirações bizarras. Nada disso; a lenda do vampiro volta às suas origens, ao strigoi, ao culto aos deuses antigos. Nessa linha a série Tempos de Sangue é intrigante e faz o leitor querer saber mais a respeito.